Esse texto tenta traduzir em palavras o que passa na cabeça de um atleta antes de um teste de 1.000m.
Tenta quebrar o mito do que pensam muitos leigos, de que os treinos mais difíceis são os mais longos, pois é justamente o contrário.
E conta um pouco de uma história de luta contra o ácido lático, essa substância que enrijece os músculos e causa fadiga. Isto porque, a determinada velocidade acima do seu limiar, seu corpo começa a produzir mais ácido lático do que conseguirá eliminar. E isso dói... aumente cada vez mais a velocidade, e o nível de ácido lático também aumentará rápido.
Faça um teste de 1.000m no limite... e ele chega a níveis estratosféricos.
No meu caso, é um processo que dura menos de 3 minutos. E pelo menos 24 horas de recuperação.
Fico inválido pelo resto do dia.
Parece incrível para alguém que corre confortavelmente por 3 horas, sofrer tanto com menos de 3 minutos?
Bem-vindos ao teste de 1.000m e à dor que aproxima da morte.
Aquecimento. É hoje. É hoje que eu vou morrer. Vou correr bem devagar porque quem sabe penso melhor e deixo para amanhã. Estou me sentindo cansado hoje mesmo. Não dormi bem. Acho que comi mal. Não é um bom dia para teste. Mas também já estou aqui, se não fizer, vou ter que deixar para amanhã e a tortura vai continuar. Não vou dormir direito e vou sofrer de qualquer jeito. Vai hoje mesmo.
Está acabando. Caramba, vai começar o sofrimento. Vou entrar naquele processo mais uma vez. Porque estou fazendo isso comigo. Deixa de ser fraco. Você corre pra isso. E hoje é pra morrer mesmo. Todo atleta de verdade tem que passar por isso às vezes. Deixa de frescura. Corre. É agora. Vamos!
Clic no relógio.
Tá forte demais, meu Deus. Vou passar em quanto esse 200m. Que velocidade. Ainda está tranquilo. Estou usando energia anaeróbia, o pouco dela que tenho disponível. Está forte, mas ainda não dói. Vai dar tudo certo. Concentra. 31s.
Quando passar no 400m já estarei quase na metade. Preciso de uma passagem boa. Senão, não vai adiantar nada. Mas já tá doendo. Está começando a doer pra caramba. Eu não sabia que doía tanto já na passagem de 400m. Parece que já estou em muito mais da metade das minhas forças.
1m04s. Isso é estranho, não estou acostumado a correr uma volta tão forte. Mas é só uma. Já vai acabar. Nada de repetições. Nada de tempo de intervalo. É chegar e morrer. Estou sentindo o acido lático. Passei pela metade agora, 500m. Nem vou olhar no relógio. O ácido lático está se espalhando pelo meu corpo como veneno. Dói. Vamo. Por favor vamo. Força. Força.
600m. 1m37s. O ritmo caiu, não consigo mais manter. Só falta uma volta. Quando passar aqui de novo é só me jogar no chão, vai ter acabado. Esse sofrimento vai acabar. Falta tão pouco pra acabar. Pouco mais de um minuto. Não consigo mais pensar. Estou me sentindo meio torto. Não sabia que era tão difícil. Sinceramente não sei se consigo até o final. Vou travar muito.
Estou com vontade de vomitar. Vamos fazer um trato, vamos até os 800m. O ritmo está muito forte, se parar ali, tudo bem. Eu só paro no limite, e estou perto do limite. Sabia que não era um bom dia. Só até os 800m. Me perdoo se parar ali. Tento de novo outro dia, sei lá. Mas hoje não vai dar. A dor é muito grande.
800m. 2m09s. Pelo amor de Deus, para. Não aguento mais. Vou vomitar. Vou desmaiar. Vou cair antes, não consigo ir até o final. Já estou correndo todo torto. É hoje que descubro um novo limite. Não consigo mais pensar. Aquele esforço final, só mais aquele esforço final. Já vou cair. Já vou poder deitar na grama. O ácido lático me domina. Meu corpo está paralisado. O coração vai sair pela boca.
Não consigo mais com as pernas. Mexo os braços. Mas eles também estão inundados de ácido lático.
Não quero mais saber do tempo que vou fazer. Chega de pensar em tempo, é sempre a mesma coisa. Só quero chegar. Vou chegar. Alguém prepara a ambulância. Alguém me segura.
Deve faltar 50m, meu Deus, estou chegando. É agora, último esforço, se morrer, tudo bem. Vou terminar. Aquela energia que vem da alma e do coração. Agora é hora de usá-la.
Clic.
Acabou.
Agora posso passar mal tranquilo.
(teste completado em 2m43s, uma tentativa falha de quebrar a barreira de 2m40s, em parte devido à passagem fraca na primeira volta).
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Além do citado teste de 1.000m, um único tiro, também é importante fazer repetições de 1.000m. Assim foi meu treino ontem: 6 repetições com 1 minuto de intervalo.
O primeiro é sempre difícil: não parece ser possível chegar até o final.
O segundo e o terceiro são os mais fáceis. O corpo já se adaptou e não se está tão cansado a ponto do ácido lático me dominar.
O quarto é o mais importante: é quando ultrapasso a metade e sei que vou conseguir terminar o treino.
O quinto é o mais díficil. Chego ao final já no limite.
E o último é sempre questão de coração. Normalmente nem olho no relógio para controlar o ritmo. É correr com o que sobrou.
Ao final do treino, os tiros de 1.000m com 1 minuto de intervalo foram para os seguintes tempos:
3m14
3m12
3m14
3m15
3m14
3m15
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E, depois de treinos intensos, sempre aquela tradicional rodagem em ritmo mais leve (ok, nem tão leve assim).
14 quilômetros em 55.40, ritmo de 3m58 a cada quilômetro.
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Devo admitir que durante toda a descrição eu só pensava que eu queria estar fazendo esse treino..devo ser uma delícia! =)
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