sábado, 3 de junho de 2017

Como é treinar na Suíça com Atletas Olímpicos.

É quinta-feira, final do dia no trabalho. Naquela semana já havia corrido cerca de 60 km. Estou cansado e quero logo ir pra casa. Penso que dormirei cedo.

Estou tomando meu terceiro ou quarto café do dia, quando recebo um email me avisando: "amanhã, na nossa Meia-Maratona, teremos um novo membro no nosso grupo, o Rafa vai correr com a gente". 

Eu havia dito que "ia ver se daria". Agora, já era.

Pouco depois, outra das participantes do grupo, que senta ao meu lado, resolve ir pra casa e me diz, bem objetivamente: até amanhã às 06h. Ela encerrou sua carreira de atleta profissional recentemente. Foi atleta de Remo, e participou de três Olimpíadas. Bateu na trave duas vezes pela medalha: foram dois quarto lugares, o último deles no Rio. Em 2014 chegou ao topo do mundo: foi campeã mundial em sua prova.

Hoje, ela trabalha comigo, e treina para o seu primeiro Ironman. 

É bacana poder passar alguma experiência para uma atleta Olímpica. Já estive na situação de estar "às vésperas do primeiro Ironman", e conheço um pouco das dificuldades do treinamento. Acontece que eu descubro que a minha percepção de Ironman é bem diferente da dela. Não que ele não seja levado a sério, pelo contrário. Mas pra mim o Ironman foi um dos meus grandes projetos de vida, a ela, parece "só mais uma provinha feita por diversão". 

No dia seguinte, acordo às 05h, para sair de casa às 05h45 e chegar ao local de encontro às 06h00. Em ponto. Sem a cultura sul-americana do atraso. 6h00 são 6h00, se você não está lá, azar o seu, vai perder o treino em equipe e ainda se sentir mal por ser o único atrasado.

Sou o quinto membro da equipe. Havia uma chuva fina, e estava um pouco frio. Apesar da proximidade do verão, de manhã bem cedo é sempre friozinho por aqui. 

Queria dormir mais duas horas... mas fui.


"Até amanhã às 06h", ouvira.


 O treino não é particularmente rápido, confesso que não tenho a menor dificuldade em manter o ritmo de cerca de 4:50 min/km (apesar do sono...), mas mesmo assim ele me espanta pela brutalidade. É um treino "cru". Deixe-me explicar o que quero dizer. Não há qualquer comentário sobre estar ali correndo 21 KM na chuva numa sexta-feira às 06h00. Conversa-se pouco, apenas o necessário. Não há qualquer "mimimi". O treino começa às 06h00, não oferece resistência e antes das 09h00 está todo mundo trabalhando, sem qualquer celebração, menção ou email "comemorando o feito".  Não há fotos nas Redes Sociais depois, isso seria absolutamente ridículo. Esse é o verdadeiro treino raiz, pegando emprestado o termo que andou bombando por aí.

Essa percepção do "vai lá e faz, não reclama e não se envaideça" é brutal porque ela é completamente parte do cotidiano de um atleta que chegou no topo e completamente distante da realidade desconectada do esporte que temos no Brasil.  Fico imaginando quantas vezes essa atleta já acordou antes do nascer do sol para remar e se tornar Campeã Mundial de um esporte muito disputado. Perto disso, nossa Meia-Maratona era de fato um passeio no parque.

Confesso, estou adorando isso aqui na Suíça, porque no Brasil em geral nós temos uma mentalidade esportiva tão atrasada, que ter companhia num treino desses às 06h00 é bastante improvável (e reduzido a alguns insanos que conto nos dedos). 

Pois deixe-me contar outra história.

Essa é ainda mais recente, é dessa semana. Estou na pista, e este treino definitivamente não é um passeio no Parque. É treino para levar ao limite. 

Estou acompanhado por um outro amigo, 4 vezes Atleta Olímpico de Inverno pelos Estados Unidos no Cross-Country Ski. Para quem não faz ideia do que é Cross-Country Ski, saiba que é nesse esporte que estão os atletas mais preparados fisiologicamente do mundo (ao menos em termos de vo2 máximo).

Ele não parece um corredor. É mais alto e mais pesado que eu. Na verdade, ele não é um corredor. Ele é um ex-atleta de Cross Country Ski que hoje faz a corrida como Hobby. Tem 10 anos a mais que eu. Só que um "Hobby" de atleta Olímpico é, digamos, bem acima da média.

O treino consiste em correr 1000m forte, trotar uma volta, correr 600m forte, trotar meia volta, correr 400m forte, trotar meia volta, e correr 200m forte. Queria fazer três séries desse treino, mas ao terminar a primeira (com os tempos de 2'57", 1'43", 1'08" e 32"), percebo que fazer duas séries já será extremamente difícil. Menciono isso ao meu colega. Sinto empatia por ele, deve estar sofrendo bastante nesse treino. Não quero que faça para me acompanhar e ter o risco de se lesionar. Ele nem ia vir treinar hoje, pois dois dias antes já havia feito uma sessão super difícil na pista (enquanto eu estava só trotando). Vamos fazer as duas séries, e deu, até porque eu não conseguiria chegar na terceira.

A segunda série é super sofrida, e mais rápida que a primeira (2'55", 1'42", 1'06" e 30"). Para mim, era final de treino, satisfeito com o desempenho. É hora de descansar.

Qual não é minha surpresa quando escuto "sinto que não melhoramos nada, vamos fazer mais um 1000m".  Eu nem sei o que dizer. Não é questão de querer ou não querer. Eu simplesmente acho que não consigo mais. Só que eu não digo nada. Em vez disso, deposito minhas fichas no intervalo de 6 minutos entre uma série e outra. Quando esse intervalo acabar, eu falo alguma coisa.
Ao final do intervalo, penso que dá para ao menos tentar. Não sei como isso vai terminar, mas vou. Puxo os primeiros 300m, mas antes de completar a primeira volta sou ultrapassado. É normal, nós sempre alternamos... "um puxa o outro". Mas dessa vez eu não consigo acompanhar. Sou ultrapassado, e fico. A distância só cresce.

Ele abre mais de 50m de distância. Cruzo a linha com cerca de 3m02s, praticamente me arrastando. Eu não tenho mais pernas. Ele fecha para 2m51s.

No final do treino ainda o escuto dizer que "hoje estava se sentindo bem e poderia fazer mais".

Eu... eu só quero ir pra casa.

Faz uma semana, corri a Meia-Maratona de Winterthur, aqui na Suíça, em 1h14'08.
Correr a 3:30 min/km nunca foi tão fácil.

Estou numa ótima forma física e correndo mais de 100 km por semana (veja meu log no Strava).

Mas o que mais tem feito diferença nesse processo de melhora é esse treinamento prático e psicológico com atletas Olímpicos. 

É um mindset realmente impressionante, e até assustador.

Um dos três valores Olímpicos se chama "Excelência", e por aqui eu tenho descoberto ele na prática. E eu quero ele pra mim. Eu quero a Excelência Olímpica.

Não necessariamente como atleta, sou realista. Mas esse mindset que extrapola o campo esportivo.

Essa ausência total de dificuldades, essa humildade crua do "vai lá, faz, não reclama". E esse "faz" ser num nível de qualidade assustador.

É para isso que estou aqui.

Para aprender com os melhores a ter essa mentalidade e aplicar em todos os campos da vida.

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